Historicamente, centros urbanos ressurgiram após tragédias, com planejamento, marcos regulatórios e investimentos; no Brasil, crise expõe abismo entre territórios ricos e de extrema pobreza
A pandemia do novo coronavírus, com 7,8 milhões de casos confirmados e 431 mil mortes em todo o planeta*, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), já é considerada a maior crise sanitária mundial da nossa época, com impactos em todos os setores da sociedade. Para o urbanista Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, a pandemia atual é mais um entre os vários e inúmeros sustos que a humanidade já passou, incluindo situações absolutamente dramáticas de guerras, inundações, terremotos, incêndios e doenças. Mas representa também uma oportunidade das cidades se reinventarem.
“Olhando historicamente, é mais um episódio na trajetória da humanidade. E a História nos mostra que as cidades conseguem sempre ressurgir das mais profundas tragédias. Da Berlim devastada na Segunda Guerra Mundial, e hoje uma das cidades mais interessantes e um dos maiores pólos culturais do mundo, a Londres do século XVIII, com a peste e as doenças, que depois disso criou marcos regulatórios com padrões de higiene e saúde pública”, explica o professor. De acordo com ele, é sempre por meio desses grandes percalços que as cidades se mexeram. “Mas, lógico, as respostas que elas dão variam muito de cidade para cidade, de país para país, de governo para governo, de sociedade para sociedade.”
Ele chama a atenção para as regiões mais pobres e periféricas das grandes cidades, como São Paulo, onde a população mais vulnerável socialmente já enfrentava condições mais precárias de vida e tinha prevalência maior de doenças e casos de morte. “Quando chega uma pandemia, essa situação se agrava. O recado que está sendo dado é que não podemos mais permitir, enquanto sociedade, viver em cidades que tenham esses territórios com tantas fragilidades e com tanta iniquidade. Não é possível ter essas cidades duais — territórios ricos e de extrema pobreza.”
Para Leite, essas mudanças que podem vir estão relacionadas a planejamento urbano, adoção de marcos regulatórios robustos e investimentos contínuos em cultura, educação e urbanismo. Ele cita como exemplo a própria Europa, que já foi uma região muito precária e hoje tem altíssimo padrão de vida, e a cidade de Medelín, na Colômbia, que em algumas décadas se transformou em uma das cidades mais qualificadas e inovadoras do planeta. Segundo ele, a ciência é outro fator fundamental para conseguir mapear e ter indicadores para fazer diagnósticos precisos de onde a cidade precisa de mais abastecimento, infraestrutura e condições de higiene, por exemplo.
O professor afirma que as cidades — talvez a maior invenção do ser humano e responsáveis pelo grande progresso da humanidade — continuarão a ser fundamentais para a vida urbana, pois são nelas que estamos majoritariamente e que vamos continuar a viver. “ A maior parte da população brasileira vai permanecer onde já está, e nós temos que trabalhar enfaticamente para melhorar as suas condições de vida urbana, o que significa, entre outras coisas, habitação digna, infraestrutura básica e transporte público de qualidade. O investimento pesado tem que ocorrer aí, e a sociedade como um todo está tomando esse chacoalhão e esse aviso para poder avançar nessa mudança.”